sábado, 5 de outubro de 2013

A história e o projecto - in "Nadir Afonso obra" - João Cepeda



Panificadora de Vila Real
Vila Real 1965

Em 1944, várias padarias existentes fora de Vila Real uniram-se, formando a empresa "Vila Real Panificadora, Lda.", com sede na Rua Alexandre Herculano dessa mesma cidade. O seu crescimento foi exponencial e rapidamente se estabeleceu como uma referência da panificação da zona.
Cerca de 20 anos mais tarde, em 1965, Manuel da Costa Azevedo júnior - cidadão de grandes posses, residente no Porto e dono de uma empresa de moagem em Marco de Canaveses -, adquiriu a "Vila Real Panificadora, Lda." e outras pequenas padarias que, entretanto, haviam surgido. A par do crescimento da "Vila Real Panificadora, Lda." formou-se uma outra sociedade, constituída por quatro associados principais, todos intimamente ligados à indústria da panificação - Mário do Poço Duro, António Teixeira, Sebastião Eirinhas e Domingos Gaspar. Mais tarde, esta nova sociedade fundir-se-ia com a "Vila Real Panificadora, Lda." (embora contra a vontade de António Teixeira), reforçando a influência que esta possuía então no mercado.
Após a união, no mês de Junho de 1965, foi decidida a construção de um edifício que acolhesse uma panificadora principal. Assim, Manuel da Costa Azevedo Júnior requereu autorização à Câmara Municipal de Vila Real para a construção do equipamento que se iria situar perto do atual bairro da Araucária, numa zona então unicamente destinada às indústrias. Talvez pelo conhecimento da panificadora com mais sucesso da região - a de Chaves -, uma vez deferido o pedido, foi convidado para conceber o desenho do edifício Nadir
Afonso, sendo então apresentado um projeto de arquitetura assinado pelo mesmo.
Após a vistoria final à obra, ocorrida a 7 de Outubro de 1966, a panificadora estava concluída e aprovada pela Câmara, tendo o custo total da construção rondado os 10 mil contos, segundo um dos sócios trabalhadores, Mário Duro1.
Três anos depois de ter traçado a panificadora de Chaves, Nadir Afonso via-se novamente confrontado com a resposta a um programa exatamente igual ao primeiro exemplo.
Ao analisar esta segunda panificadora, é fácil concluir que, curiosamente, o arquiteto decidiu realizar uma abordagem e estratégia de projeto em tudo semelhantes à obra de
Chaves, como aliás o próprio "confessa": (...) A [panificadora] de Vila Real é uma «cópia» (...) adaptada. (...) Presumo que a de Chaves esteja melhor2.
Além da extrema parecença entre estes dois trabalhos, ambos partilham também uma situação geográfica idêntica relativamente ao centro da cidade, localizando-se a panificadora numa zona então confinante de Vila Real3. O seu terreno de implantação é igualmente plano e o edifício situa-se, mais uma vez, numa esquina.
Novamente, tudo é organizado em redor de uma grande sala de trabalho, existindo a mesma preocupação de uma total independência de serviços, "circuitos" e acessos. As dependências que compõem esta fábrica são praticamente as mesmas das de Chaves, com uma "pequena" diferença que será de assinalar: aqui, o armazenamento da farinha era feito numa grande torre - a "torre dos silos" -, para onde esta era levada e guardada, de maneira a que, quando necessário, caísse diretamente nas amassadeiras4. Esta alta torre apresenta-se como um elemento bastante visível no edifício, configurando uma componente vertical fortemente presente que contrasta com a restante horizontalidade do conjunto. Esta é, de resto, a única grande diferença em relação à imagem global das duas panificadoras que, como já foi referido, apresentam a mesma linguagem arquitetónica.
Também aqui a cobertura é feita numa sucessão de abóbadas de cascas em betão armado. Porém, neste caso, todas as três lajes "rampeadas" que a compõem incluem este tipo de solução. Assim, a primeira e a segunda laje incorporam duas abóbadas de perfil curvo, e a terceira, uma, todas novamente desfasadas em cerca de 1 m e com raios e posicionamento variados. Existe uma outra diferença em relação à panificadora de Chaves: no exemplar de Vila Real, a estrutura de suporte da cobertura abobadada é bastante mais regular, sendo regrada, em planta, por um "módulo" que se aproxima de um quadrado com 10 m de lado. Além disso, a complexidade e dificuldade construtiva que - para a época e para a empresa construtora que realizou a obra ("Construtora Vila Real") - constituiu a execução de arcos de tão pouca espessura em betão armado pré-esforçado, levou a que se optasse, em obra, por uma solução construtiva mais ligeira em relação à de Chaves. Assim, escolheu-se uma estrutura metálica que sustentasse todas as abóbadas, sendo esta composta por moldes das mesmas em chapa de ferro5.
Curiosa, a forma como Nadir Afonso quebra propositadamente o movimento curvilíneo e remata, neste caso, a cobertura, no lado Noroeste, com o desenho de uma laje em duas águas, "justificado", talvez, pela sua função, uma vez que esta alberga, no primeiro andar, a habitação do guarda6. É interessante notar, mais uma vez, o exemplo brasileiro já referido, do terminal de autocarros de Londrina (1952), de João Vilanova Artigas. Nessa obra, também ele concilia uma solução em abóbadas de cascas em betão armado sobre as paragens dos autocarros com um remate em laje inclinada sobre as salas de espera, bilheteiras e outros espaços anexos, embora, neste caso, o "acabamento" seja feito numa só água7.
Nesta panificadora, a existência de um só forno principal resulta ainda numa única chaminé que marca o conjunto na laje mais recuada, ao estilo das quatro da fábrica de Chaves.
Por último, é de referir a diferença de escala existente entre as duas panificadoras que, apesar de ligeira, transforma totalmente o grande espaço central da panificadora de Vila Real.
Com pés-direitos mais altos do que os utilizados em Chaves, esta ampla sala transmite - quando no seu interior - uma sensação próxima de uma pequena nave industrial.
"Mimetizada" pelo próprio autor em relação à sua obra homónima de Chaves, a panificadora de Vila Real denota o mesmo modelo de referências modernas que foram mencionadas para o caso "original", influenciadas claramente pela arquitetura "corbusiana" e brasileira. Como tal, marca presença o mesmo tipo de desenho livre, atento ao cuidado estético na modelação dos volumes e completado por um livre tratamento cromático das formas8, principalmente visível ao nível da rua, nas fachadas que, mais uma vez, opõem subtilmente uma quadrícula ortogonal a um remate superior curvilíneo. Este conjunto de apontamentos remetem-nos novamente para a busca da harmonia e da proporção nas composições arquitetónicas que o Modulor de Le Corbusier - em que Nadir Afonso trabalhou - procurava alcançar.
Em pouco tempo, esta panificadora acabou por se tornar também num exemplo de sucesso. Entretanto, com o evoluir dos tempos e a não adaptação do edifício a novas realidades (ao invés da de Chaves), o "negócio" foi decaindo cada vez mais, acabando por falir, o que resultou no declínio completo da panificadora de Vila Real como grande unidade fabricante de pão.
Tendo funcionado até ao início dos anos 90, atualmente o edifício encontra-se num estado deplorável, de total abandono (quase em ruína), sem qualquer tipo de vedação e proteção. Totalmente degradado e já bastante vandalizado, no seu interior existe todo o tipo de lixo e entulho, assim como matérias combustíveis, não sendo razoável analisar qualquer tipo de possíveis modificações da panificadora em relação ao seu desenho original9.
Neste momento, esta obra arquitetónica de Nadir Afonso está envolta num clima de grande polémica, uma vez que o atual proprietário, José António Meireles, entregou na Câmara Municipal de Vila Real um projeto que passa pela demolição da panificadora para a construção de um bloco habitacional.
Não existindo desenvolvimentos conclusivos até à data, José António Meireles reconheceu o estado de total deterioração do imóvel, que assegurou já ter estado vedado. Não colocou de parte a hipótese de recuperação do edifício, mas espera, para tal, uma
resposta da autarquia de Vila Real ao projeto já citado10. Porém, tudo aponta para que, infelizmente, este projeto seja aprovado e, portanto, provavelmente a panificadora desaparecerá.
Este é mais um caso emblemático em que nunca é demais afirmar que está em causa património relevante da arquitetura moderna portuguesa do século XX e que o imenso desconhecimento do grande público em relação a este e a outros casos semelhantes não contribui para a divulgação da qualidade desse património arquitetónico, bem como para a sua desejada proteção. Também é de referir que, porventura, a hipótese óbvia de adaptação do edifício a novos usos deveria ser aqui ponderada11.
Construção de autor, a moderna panificadora de Vila Real foi uma das últimas obras de arquitetura de Nadir Afonso, pouco tempo antes do seu total abandono da profissão.


Notas:
1.        Frederico CORREIA; Eduardo TAVARES - "Obra de Nadir Afonso ao abandono: Vila Real Panificadora, Lda.: Ascensão e queda!". Notícias de Vila Real, 2007-02-13, p. 10.
2.        Entrevista realizada pelo autor a Nadir Afonso a 17 de Outubro de 2010.
3.        Michel TOUSSAINT - op. cit., p. 36.
4.        Idem, ibidem.
5.        Segundo o Eng.º António Carlos Ribeiro Fernandes, neto do engenheiro responsável pela construção desta panificadora (Eng.º António Fernandes), os moldes das abóbadas em chapa de ferro foram mandados fazer propositadamente à siderurgia "Marinho", localizada em Amarante.
6.         Projetada inicialmente como habitação do guarda, esta chegou também a ser usada como habitação para um padeiro.
7.        Michel TOUSSAINT - op. cit., p. 36.
8.        Para além do branco, desta vez, as cores utilizadas por Nadir Afonso são o creme e um "bordeaux" ligeiramente mais esbatido que o da panificadora de Chaves.
9.        São, porém, visíveis - entre muitos outros aspectos -, as diferentes condições actuais do terreno, tendo sido realizados novos arruamentos diante da panificadora que, pela sua maior elevação em relação à cota original do edifício, o encobrem hoje de forma manifesta.
10.     Frederico CORREIA; Eduardo TAVARES - op. cit.
11.     No seio da corrente de opinião dos "defensores" da reabilitação e manutenção total do edifício da panificadora, já houve quem propusesse que este albergasse um Museu do Automóvel, pela forte tradição de automobilismo que Vila Real possui. 









Um comentário:

  1. A quem de direito pertence o edificado?
    É do domínio privado ou do domínio público?
    O que pensa a Anabela, para instalar neste espaço?
    Eu já dei a minha opinião sobre a ocupação deste edifício, após recuperação e adaptação do mesmo.
    O Real Museu circuito automóvel.

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